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sábado, 24 de maio de 2025

Escrito por em 24.5.25 com 0 comentários

Lutas Exóticas

Hoje eu vou falar mais uma vez sobre esportes exóticos, e mais uma vez por causa dos Jogos Mundiais Nômades. Porque eu tenho a intenção de, assim como eu fiz com as Olimpíadas, falar sobre todos os esportes que já fizeram parte do programa dos Jogos Mundiais Nômades, e percebi que três dos que estão faltando são lutas. Diante disso, decidi juntar mais uma luta, sobre a qual eu penso em falar já há algum tempo, mas não queria fazer um post só pra ela, e criar esse post aqui - que, por falta de um nome melhor, se chamará lutas exóticas.

Vamos, então, começar justamente pela luta que nunca esteve nos Jogos Mundiais Nômades, o silambam. O silambam é uma luta de origem indiana, e surgiu na região onde hoje está localizado o estado de Tamil Nadu, território originalmente pertencente ao povo tâmil. Segundo a lenda, o silambam surgiu por volta do ano 1000 a.C., e foi criado pelo sábio Agastya Munivar, como um treinamento para o corpo e a mente - silam significa "montanha", e bam significa "bambu", uma referência à dureza e à leveza, ao vigor da defesa e à arma usada para os ataques. A primeira menção escrita a essa luta data do século II a.C., no texto religioso Sillappadikkaram, que diz que ele já era praticado na região desde dois séculos antes. E achados arqueológicos sugerem que o silambam pode existir desde 10.000 a.C., sendo dez vezes mais velho do que a lenda de Agastya diz que ele é.

Seja como for, o silambam, assim como todas as artes marciais, passou por diversas modificações ao longo do tempo, sempre mantendo sua essência. A primeira foi na dinastia Pandya, entre os anos 560 e 590, quando o rei Kadungon determinou que a prática do silambam era obrigatória por todos os militares. A prática da luta caiu em desuso nos anos seguintes, mas teria um volta à moda a partir de 1613, no reinado de Varagunarama. Entre 1760 e 1799, o rei Kattabomman retomaria a obrigatoriedade do ensino do silambam entre os militares, que usariam a luta para expulsar de Tamil Nadu os colonizadores ingleses. No final, os ingleses venceriam e proibiriam a prática do silambam em todo o território indiano, o que quase levaria ao desaparecimento da arte marcial. Após a independência, em 1947, de forma tímida, os mestres de silambam passariam não somente a tentar trazer a luta de volta ao seu período de glória, mas também a espalhariam por todo o país - como a Índia tem muitos idiomas, é comum o silambam ser conhecido em cada estado por um nome diferente: nedu vadi em Kerala, karra saamu em Andhra Pradesh, dhanta varisai em Karnataka, lathi em Uttar Pradesh (onde fica o Taj Mahal), marithani em Maharashtra (onde fica Mumbai), dhal lakadi em Gujarat, patta pachi no Punjab e em Haryana, e kathga em Jharkhand e Bihar.

Com o silambam sendo praticado em todo o país e sendo levado por imigrantes indianos para todo o planeta, começariam os esforços para transformá-lo em um esporte, unificando suas regras e realizando campeonatos. Esses esforços culminariam, em 1994, na fundação da federação indiana de silambam (AISF), e, em 1999, da associação mundial de silambam (WSA), sediada na Malásia, que hoje conta com 25 membros dos cinco continentes, e organiza, a cada dois anos desde 2004, o Campeonato Mundial de Silambam. A WSA atualmente está testando as regras de uma versão paralímpica do silambam, e tem como ambicioso projeto a inclusão do silambam nas Olimpíadas e Paralimpíadas - o que parece improvável sem um substancial aumento no número de praticantes e de países-membros. O silambam foi esporte de demonstração nos Jogos da Commonwealth de 1998, realizados em Kuala Lumpur, capital da Malásia, o que deu um empurrão para a criação da WSA, mas não trouxe a popularização esperada para o esporte.

O silambam usa vários tipos de armas. A mais tradicional é o bam, um bastão de bambu de 2,5 cm de diâmetro, cujo comprimento deve ser suficiente para que ele, apoiado no chão, chegue à altura das sobrancelhas do lutador. Esse comprimento permite que o lutador mantenha uma certa distância do oponente, impedindo o uso contra ele de armas como facas e espadas. Outras armas além do bam são os sedikuchi, dois bastões de bambu curtos, com cerca de 1 m de comprimento cada, usados um em cada mão; a lança vel; a faca katti; a espada curva vall; o chicote savuku; a curiosa espada surul kaththi, composta por uma empunhadura e entre duas e cinco lâminas com entre 30 e 50 cm de comprimento cada ligadas por elos de correntes, o que faz com que ela seja flexível como um chicote; as aruval, duas foices de mais ou menos 1 m de comprimento, usadas uma em cada mão; o panthukol, bastão de 1,5 m de comprimento que tem em cada ponta uma corrente e uma bola penduradas, que podem ser espinhentas ou estar em chamas; o katar, adaga tradicional indiana de lâmina triangular e empunhadura em formato de H; e o maduvu, madu ou maru, curiosa arma feita com os chifres do antílope indiano, também usada uma em cada mão, difícil de manejar e de curto alcance, mas mortal nas mãos de um mestre, que, com seu uso apropriado, pode até desarmar oponentes ou impedir que eles o atinjam com qualquer arma.

Assim como o wushu, o silambam possui uma categoria "artística", chamada thanithiramai, na qual o objetivo não é derrotar um oponente, e sim demonstrar a perícia do lutador com as armas ou desarmado. A WSA reconhece dez provas individuais, sendo duas para o bam, cada uma com movimentos válidos próprios (chamadas kambu veechu e alangara veechu), uma para os sedikuchi (erattai kambu veechu), uma para a vel (vel kambu veechu), duas para a vall (otrai vall veechu, com uma espada, e erattai vall veechu, com duas), duas para a surul kaththi (otrai surul vall veechu, com uma espada, e erattai surul vall veechu, com duas), uma para o maduvu (maduvu veechu) e uma desarmada (kuthu varisai). O thanithiramai também possui uma versão em duplas, chamada autha korvai jodi, na qual os competidores fingem estar enfrentando um ao outro, e uma em trios, chamada kulu ayutha veechu, na qual também são avaliados sincronismo e interação. Tanto nas duplas quanto nos trios podem ser usadas quaisquer armas da versão individual (bam, sedikuchi, vel, vall, surul kaththi ou maduvu).

O uniforme do silambam é composto por uma camisa branca de algodão de mangas curtas e gola redonda com detalhes em preto nas barras, com o único detalhe colorido permitido sendo o símbolo do clube, país ou patrocinador no peito, com as mulheres podendo usar um top esportivo branco ou preto por baixo; sapatilhas e meias também de cor branca, podendo ter detalhes em preto; e calças compridas largas de cor preta, também de algodão. Para a modalidade de luta, que se chama kambu sandai e sempre usa o bam, os lutadores também devem usar coletes protetores, protetores faciais com grade, tipo o de um catcher do beisebol, protetores de virilha e caneleiras. Assim como em outras lutas desportivas, no kambu sandai os lutadores são divididos em categorias de peso, para maior justiça. Tanto no masculino quanto no feminino são nove categorias diferentes, mas no masculino as categorias são até 50 kg, até 55 kg, até 60 kg, até 65 kg, até 70 kg, até 75 kg, até 80 kg, até 85 kg e acima de 85 kg, enquanto no feminino são até 45 kg, até 50 kg, até 55 kg, até 60 kg, até 65 kg, até 70 kg, até 75 kg, até 80 kg e acima de 80 kg.

A área de luta do silambam, usada tanto no thanithiramai quanto no kambu sandai é um quadrado de 10 x 10 m, semelhante a um tatame, preferencialmente de cor azul clara, com um dos cantos de cor vermelha e o diagonalmente à sua frente de cor azul escura; um dos lutadores sempre usará colete vermelho e o outro azul, dependendo do canto no qual começam a luta. Para o kambu sandai, dentro desse quadrado são traçados três círculos concêntricos: o mais largo tem 7,32 m de diâmetro e é de cor vermelha, o do meio tem 6,1 m de diâmetro e é de cor amarela, e o menor tem 1,83 m de diâmetro e é de cor branca. Entre o círculo vermelho e as laterais do quadrado é a zona livre, onde não pode ficar nenhum elemento; entre o vermelho e o amarelo é a zona de advertência; entre o amarelo e o branco é a zona de combate; e o círculo branco delimita a zona de início.

Numa competição de kambu sandai, os lutadores começam com os pés sobre o círculo branco e, a um comando do árbitro central, iniciam o combate, que deve ocorrer dentro da zona de combate. Pisar voluntariamente na zona de advertência gera, bem, uma advertência, mas cair lá em decorrência de um movimento ou ser empurrado para lá pelo adversário não resulta em nada, a não ser uma advertência para o adversário, dependendo do caso. Um golpe que comece na zona de combate mas termine na zona de advertência pode ser considerado válido, dependendo da forma como foi executado. Uma luta de kambu sandai é oficiada por um árbitro central, que fica dentro da área de luta com os lutadores; uma mesa, posicionada à direita do canto azul, que controla o tempo e anota os pontos e faltas; e um painel de cinco jurados, dois posicionados à esquerda do canto vermelho, dois à esquerda do azul, e um à direita do vermelho, que conferem os pontos aos lutadores.

Uma luta de kambu sandai é disputada em melhor de três rounds de três minutos cada. A cada round a pontuação é zerada; se o mesmo lutador ganhar os dois primeiros rounds, ele é declarado vencedor da luta, mas, se cada lutador ganhar um round, é disputado um terceiro, com aquele que ganhar o terceiro round sendo o vencedor. Tocar o oponente sem força vale 1 ponto, golpes com força efetuados com o lutador mantendo pelo menos um pé no chão valem 2 pontos, e golpes efetuados com o lutador no ar, ou seja, com os dois pés fora do chão, valem 3 pontos. As áreas válidas para o lutador acertar com o bam são peito, ombros, braços, barriga, costelas, coxas, canelas e pés; acertar o bam do oponente não vale pontos, mas também não é falta, enquanto acertar uma área proibida, como cabeça, pescoço, costas, mãos ou virilha pode resultar em ponto para o adversário ou desclassificação - assim como usar golpes inválidos ou ter conduta antidesportiva.

Já para o thanithiramai é traçada na área de luta apenas o círculo branco, mas a área de competição efetiva tem apenas 9 x 9 m, com o 1 m restante sendo de cor vermelha e representando a zona proibida. Os competidores começam dentro do círculo branco, e devem fazer sua apresentação sem tocar a zona proibida, pois isso resulta em perda de pontos. Eles serão avaliados por um painel de cinco jurados, todos posicionados à direita do canto vermelho - de frente com a mesa, que controla o tempo e anota as pontuações dos lutadores, posicionada à direita do canto azul. Nas modalidades individuais cada competidor terá 2 minutos para se apresentar, e, nas de duplas e trios, cada conjunto terá 3 minutos, em todos os casos recebendo notas por realizar corretamente os movimentos obrigatórios, pela beleza plástica dos elementos opcionais, pela transição fluida entre um movimento e outro, e pela aplicabilidade dos movimentos apresentados em uma situação real de combate.

Vamos passar para uma luta de origem coreana, o taekkyeon, também grafado taekkyon, taekgyeon ou taekyyun. O taekkyeon é considerado a arte marcial mais antiga da Coreia, mas suas origens exatas são desconhecidas. Sua primeira referência escrita está no livro Jaemulbo, escrito entre 1776 e 1800, na Dinastia Joseon, mas estudiosos afirmam que ele pode ter sido criado no século III. Sua primeira referência no ocidente seria no livro Korean Games, do antropólogo norte-americano Stewart Cullin, publicado em 1895; segundo Cullin, durante a Dinastia Joseon o taekkyeon era amplamente praticado, e existia em duas versões, uma usada pelos militares, com aplicações práticas em combate, outra popular dentre as camadas mais pobres da população, com torneios ocorrendo durante festivais. Também vale citar o prefácio de um livro sobre o taekkyeon escrito pelo mestre Song Deok-gi, mais conhecido pelo pseudônimo Hyeonam: "não se pode precisar quando o taekkyeon surgiu, mas, até o fim do Reino da Coreia, as pessoas o praticavam".

Seja como for, após o fim da Dinastia Joseon, o taekkyeon cairia em declínio, até que, no início do século XX, só seria praticado na capital (então chamada Hanyang). Durante a ocupação japonesa na Segunda Guerra Mundial, a prática do taekkyeon seria proibida, e a arte marcial quase desapareceria; seria graças a Deok-gi, considerado "o último mestre de taekkyeon vivo", que a arte marcial seria salva do esquecimento: após o final da Guerra da Coreia, Deok-gi, que havia sido aluno do grande mestre Im Ho, e permaneceu ensinando o taekkyeon em segredo durante a ocupação, conseguiria convencer o presidente Syngman Rhee da importância de sua preservação, e, após uma apresentação no aniversário do presidente, em 26 de março de 1958, receberia permissão e apoio financeiro para viajar por toda a Coreia do Sul ensinando e divulgando o taekkyeon.

A partir de então, o taekkyeon passaria a ser visto como um importante elo com a história da Coreia, até que, em 1983, graças a um movimento liderado por um aluno de Deok-gi chamado Shin Han-seung, seria declarado Patrimônio Imaterial pelo governo sul-coreano, que financiaria a abertura de escolas nas quais ele pudesse ser ensinado e estimularia sua inclusão no programa esportivo das universidades. O primeiro torneio nacional de taekkyeon ocorreria na cidade de Busan em junho de 1985, após o qual seriam fundadas duas organizações: a Widae Taekkyon, que busca preservar a pureza da arte marcial, e a federação mundial de taekkyeon (WTKF), sediada na Califórnia e fundada por pupilos de Han-seung, que foca na parte esportiva do taekkyeon, adaptando suas regras para permitir sua popularização ao redor do planeta e a organização de campeonatos - as duas organizações são rivais, com a WTKF achando que a Widae condena o taekkyeon ao atraso, enquanto a Widae considera que a WTKF deturpa a essência da arte marcial.

A principal característica do taekkyeon é o jogo de pernas, chamado pumbalki, ou "andar em triângulos". Realizado em um ritmo próprio, semelhante a uma dança, com o qual o lutador se move como se estivesse desenhando um triângulo no chão com os pés, o pumbalki tem como objetivo fortalecer a linha da cintura e harmonizar os ataques e defesas. Outro conceito característico é o hwalgaejit, movimentos feitos com os braços que visam distrair o oponente para que ele seja surpreendido pelos golpes, mas que originalmente foram criados para ajudar o lutador a manter o equilíbrio durante o pumbalki. Por causa desses dois conceitos, uma luta de taekkyeon é plasticamente muito interessante, se parecendo com uma dança. Os principais golpes usados são os chutes (baljil) e agarrões, com o objetivo do lutador sendo derrubar o oponente ou empurrá-lo para fora da área de competição, e não acertá-lo com força como no taekwondo.

Pelas regras da WTKF, o taekkyeon é disputado em um tatame quadrado, de 3 x 3 m; a área central desse quadrado, de cor verde e 2 x 2 m, é a área válida de luta, e o restante, de cor vermelha, é a zona livre, onde não pode haver nenhum elemento. Para que um golpe seja válido, ambos os lutadores têm de estar dentro da área de luta, mas uma queda é considerada válida se um golpe começar na área de luta e o oponente cair fora dela. O uniforme consiste de uma calça branca de algodão, sapatilhas brancas e uma camisa tradicional, também feita de algodão, de mangas compridas que devem ser dobradas até a altura dos cotovelos, e aberta na frente, sendo usada uma faixa amarrada na cintura para fechá-la - mulheres podem usar um top ou camiseta por baixo. A faixa normalmente é preta e a camisa pode ser de qualquer cor, mas, em competições oficiais, um dos lutadores sempre usa camisa azul e o outro vermelha.

Uma luta de taekkyeon é disputada em melhor de três rounds, sendo que cada round dura até que um dos lutadores seja derrubado, e aquele que derrubar o oponente duas vezes é declarado vencedor. A luta é oficiada por três árbitros, sendo que um fica de pé junto aos lutadores, e os outros dois ficam sentados em cantos opostos do tatame. Em torneios oficiais, o árbitro central usa o mesmo uniforme dos lutadores, mas com camisa e faixa de cor amarela, e traz um leque na mão com os quais faz os sinais de pontos e faltas. Quando um lutador comete uma falta, ele recebe uma advertência, e, dependendo da gravidade da falta ou do número de advertências, ele pode ser considerado perdedor do round ou da luta. Em torneios oficiais, os lutadores são divididos em categorias de peso, mas a WTKF não tem categorias oficiais, com a divisão normalmente ocorrendo de 5 em 5 kg (até 60 kg, até 65 kg, até 70 kg, até 75 kg, e assim por diante).

Embora a popularidade do taekkyeon cresça a cada dia, ainda é difícil organizar torneios, e a WTKF ainda não conseguiu organizar um Mundial, atuando principalmente na organização de torneios nos Estados Unidos. Todos os torneios de taekkyeon são organizados a nível regional ou nacional, com os torneios na Coreia do Sul sendo de responsabilidade de três organizações, a Federação Coreana de Taekkyon (KTF), fundada em 1991 e sediada dentro do Parque Olímpico de Seul; a Associação Coreana de Taekgyeon Tradicional (KTTA), fundada em 1995 e baseada na cidade de Chungju, que segue regras ligeiramente diferentes, criadas pelo mestre Jeong Kyung-hwa, segundo ele mais próximas das usadas na Dinastia Joseon; e a Associação de Taekyyun Kyulyun (KTK), fundada em 2000, sediada em Seul, que organiza o campeonato asiático e o mais famoso torneio de taekkyeon da Coreia do Sul, o Taekyyun Battle, organizado anualmente desde 2004.

A coisa mais próxima que o taekkyeon teve de um campeonato mundial foi justamente sua inclusão como esporte de demonstração na primeira edição dos Jogos Mundiais Nômades, em 2014, no Quirguistão. Foi realizado apenas um torneio masculino, sem valer medalhas, mas com lutadores de 10 países, muitos deles na verdade lutadores de taekwondo. Vale citar também que, em 2011, o taekkyeon foi incluído na Lista do Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade, se tornando a primeira arte marcial a conseguir esse feito.

O terceiro esporte que veremos hoje é o bokh, que já esteve em duas edições dos Jogos Mundiais Nômades: em 2018, no Quirguistão, como parte do programa, e em 2022, na Turquia, como esporte de demonstração, sem valer medalhas. O bokh surgiu na Mongólia, também em tempos imemoriais: pinturas datadas do ano 7000 a.C. encontradas na região da província de Bayankhongor já mostram dois homens lutando com uma multidão assistindo, embora não se possa saber se eles seguiam as regras do bokh ou não; a mais antiga referência específica ao bokh está em duas placas de bronze encontradas dentre as ruínas do Império Xiongnu, que durou de 206 a.C. a 220 d.C. Como de costume, o bokh era um treinamento militar, que visava aumentar a força, o vigor e os reflexos das tropas; Genghis Khan era um entusiasta do bokh, e estabeleceu o costume, seguido por todos os imperadores posteriores, de promover a luta não somente em treinamentos, mas também em festivais, chamados Naadam. Segundo registros, os melhores lutadores também avançavam mais rapidamente no exército, conseguindo promoções e patentes melhores.

O bokh era a principal atração dos Jogos de Urga, que ocorreram entre 1778 e 1924, com seus lutadores sendo verdadeiros superastros, responsáveis por atrair multidões para assistir suas lutas; nesse período, suas regras já estavam bem estabelecidas, com as atuais sendo praticamente idênticas. Os Jogos de Urga seriam interrompidos com a Revolução Comunista, mas a prática do bokh não, com os Naadams ainda sendo realizados, e os principais lutadores sendo condecorados com a Medalha do Trabalhador. O mais famoso lutador de bokh da história foi Jambyn Sharavjamts, que, aos 18 anos, ganhou o título de avarga (titã) ao ser campeão dos Jogos de Urga de 1894; ele somente se aposentaria em 1951, aos 75 anos, e há vídeos dele competindo em um Naadam em 1945, prestes a completar 70 anos e derrotando três oponentes muito mais jovens.

Com o fim do comunismo na Mongólia, em 1992, começariam esforços para preservar a integridade do esporte, para evitar que pressões financeiras o descaracterizassem, que culminaram com a fundação da Federação Internacional de Bokh Mongol (que tem a bizarra sigla AEMWF) - na Mongólia, desde a Revolução Comunista até hoje, o bokh é regulado pelo Ministério do Esporte. O principal campeonato da AEMWF é o Campeonato de Luta para a Etnia Mongol, que tem esse nome curioso porque é aberto a lutadores de todo o planeta, mas apenas mongóis ou descendentes de mongóis podem participar. Realizado anualmente desde 2009, com a sede se alternando entre Mongólia, Rússia e China, o Campeonato possui duas categorias (inicialmente abaixo e acima de 75 kg, atualmente abaixo e acima de 85 kg) e é exclusivamente masculino; ainda assim, ele é considerado a maior vitrine para a popularização do bokh no restante do mundo.

Mas onde o bokh brilha é mesmo na Mongólia, onde são realizados centenas de torneios por ano; o maior de todos é o Naadam Nacional, realizado anualmente em julho na capital, Ulaanbaatar, com a presença de 512 lutadores - ou 1024 em edições especiais. Abaixo dele estão os Aimag Naadam, 21 torneios regionais com 128 ou 256 lutadores cada, e abaixo deles ficam os Sum Naadam, 329 torneios locais com a presença de 32 ou 64 lutadores cada. Todos os Naadam são organizados pelo Ministério do Esporte, são exclusivamente masculinos, e disputados na categoria absolutos, ou seja, sem divisão dos lutadores por peso - a média de peso dos lutadores em um Naadam fica por volta dos 115 kg, mas já ocorreu de um lutador de 70 kg ter de enfrentar um de 160 kg. Para evitar que isso aconteça, os lutadores não são sorteados, com todas as lutas sendo definidas pela organização do torneio, o que também permite que os favoritos não se enfrentem nas primeiras rodadas; sorteios só costumam ser usados no Naadam Nacional, e, mesmo assim, somente a partir das oitavas de final.

Da mesma forma que artes marciais como o judô e o caratê usam faixas coloridas para determinar a perícia dos lutadores, o bokh usa títulos. O título mais baixo é o de Falcão do Sum, conferido ao lutador que alcance a semifinal em um Sum Naadam; o vencedor de um Sum Naadam é coroado Elefante do Sum. Nos Aimag Naadam, um lutador que alcance as semifinais ganha o título de Falcão, o vice-campeão o de Elefante, e o campeão o de Leão do Aimag. No Naadam Nacional, um lutador que alcance as oitavas de final ganha o título de Falcão do Estado, as quartas de final o de Gavião, as semifinais o de Elefante, o vice-campeão ganha o título de Garuda, e o campeão o de Leão do Estado. Um lutador que ganhe 2 Naadam Nacionais é coroado Titã, um que ganhe 4 se torna Grande Titã, e um que ganhe 5 se torna Titã Gigante. À exceção do Titã, um lutador que alcance em um torneio o mesmo título que havia alcançado no anterior ganha o título de unen zorigt, que significa "verdadeiramente corajoso" - por exemplo, um lutador que seja falcão dois anos seguidos se torna um "falcão verdadeiramente corajoso".

Outros torneios além dos Naadam também são organizados anualmente na Mongólia e fora dela; os mais famosos são os chamados Danshig, torneios com 128 ou 256 lutadores organizados por prefeituras ou governos regionais para celebrar alguma ocasião, como o aniversário de uma cidade. Fora da Mongólia, o torneio mais famoso é o Altargan, realizado anualmente na República Russa da Buriácia, que tem uma grande população mongol, e conta com a presença de lutadores da Mongólia, da Buriácia e da província chinesa da Mongólia Interior. Também é muito famoso o Torneio de Ano Novo, disputado anualmente em Ulaanbaatar com a presença de 256 lutadores, e considerado o segundo torneio mais importante abaixo do Naadam Nacional - normalmente, inclusive, quem ganha o Torneio de Ano Novo ganha o Naadam Nacional do mesmo ano. Outros torneios comemorativos podem ser realizados em qualquer época, como um realizado em Ulaanbaatar em 2011 que contou com 6002 lutadores, entrando para o Livro Guinness dos Recordes.

O bokh é disputado em uma área que pode ser um quadrado de 20 x 20 m ou um círculo de 20 m de diâmetro; a superfície pode ser um tatame, um gramado, ou de areia, desde que não tenha nenhum traço de cascalho. A mais famosa arena de bokh do mundo é a Bökhiin Örgöö em Ulaanbaatar, onde são disputados o Torneio de Inverno e o Naadam Nacional, mas, na maioria dos torneios, incluindo os Sum Naadam, a luta é disputada ao ar livre. A área de luta não conta com nenhuma marcação, mas o oponente deve ser derrubado dentro da área válida para que a vitória possa ser contabilizada. Há apenas um árbitro, que acompanha os lutadores, e cada lutador tem direito a um zasuul, que não é um treinador, mas uma espécie de amigo que o incentiva durante a luta, podendo até mesmo entrar na área de luta e dar tapinhas em seu corpo.

As regras do bokh são as mais simples possível: basta fazer com que qualquer parte do corpo do oponente acima dos joelhos (exceto as mãos) encoste no chão e você será o vencedor - não há rounds, quem cair perde e é eliminado do torneio. Também não há limite de tempo, mas, se o árbitro decidir que a luta está demorando demais, pode exigir que os lutadores parem a luta e recomecem em uma posição que facilite que eles sejam derrubados. Nos Sum Naadam é comum os lutadores começarem já agarrados, mas o normal é eles começarem sem contato físico. As regras da AEMWF permitem que os lutadores agarrem as pernas dos oponentes, mas, na Mongólia, só é permitido agarrar da cintura para cima. Nas regras usadas na China, é permitido contato entre as pernas dos lutadores - como em uma rasteira - mas, no restante do mundo, os lutadores só podem usar as mãos. Lutadores que demonstrem conduta antidesportiva ou usem movimentos proibidos - como agarrar o oponente pela roupa - podem ser desclassificados pelo árbitro.

Mas o mais interessante do bokh eu deixei para o final: o uniforme. Adaptado das roupas tradicionalmente usadas pelos soldados mongóis, ele é composto por três peças: o zodog, um colete de mangas compridas feito de lã, algodão ou seda, que deixa a barriga de fora e ainda por cima é totalmente aberto na frente, sendo amarrado, para não cair, por uma fita na altura do umbigo, segundo a lenda, para que nenhuma mulher possa se fingir de homem e disputar um torneio; o shuudag, que se parece com uma sunga de algodão; e os gutal, botas de couro que devem cobrir até metade das panturrilhas. Também é obrigatório que os lutadores entrem e saiam da área de competição realizando uma dança; normalmente são danças tradicionais, mas os lutadores mais famosos ou mais vitoriosos costumam criar suas próprias danças, pelas quais são reconhecidos pelos fãs.

Para terminar, vamos ver o gyulesh, também grafado gülesh. O gyulesh é uma luta de submissão que surgiu no Azerbaijão, e já fez parte dos Jogos Mundiais Nômades três vezes: em 2016 e 2018 como parte do programa, e em 2022 como esporte de demonstração. É uma luta exclusivamente masculina, e, como qualquer luta de submissão, tem como objetivo derrubar o oponente no chão, sendo vencedor quem conseguir fazer com que o oponente encoste as duas omoplatas no solo. Uma de suas principais características, entretanto, é que, antes da luta, os lutadores devem fazer uma apresentação coreográfica parecida com uma dança, chamada meydan gazmek, que deve ter duração máxima de um minuto, e ser realizada ao som de uma música típica chamada dzanghi. Os lutadores, conhecidos como pekhlevans se apresentam juntos, cada um com sua própria coreografia, mas devendo apresentar movimentos obrigatórios, que incluem levantar as mãos enquanto se aproximam do oponente, tocar as mãos do oponente e saltar para longe do oponente.

Além de ser obrigatória, a apresentação influencia na luta: a seu final, os árbitros decidirão qual dos dois pekhlevans se apresentou melhor, e esse será avaliado como plus, enquanto o outro será avaliado como minus. Caso a luta termine empatada, a vitória será do pekhlevan avaliado como plus, o que faz com que o minus tenha de se empenhar mais durante a luta. Depois do fim da apresentação e da escolha do plus, os pekhlevans se cumprimentam com um aperto de mão, e depois realizam um ritual durante o qual eles irão, de frente um para o outro e em posição de luta, andar como se estivessem desenhando um círculo, chocando-se três vezes de forma que seus ombros se toquem e eles façam um movimento como se tivessem sido repelidos a cada vez. Após a terceira vez, eles pulam para trás, o árbitro principal apita, e a luta começa. Uma luta de gyulesh tem duração de cinco minutos.

Atualmente, para ajudar na popularização do esporte, o gyulesh é disputado no mesmo mat da luta olímpica; o uniforme consiste de uma calça de algodão amarrada na cintura com um cordão, cujas pernas terminam logo abaixo dos joelhos, também sendo amarradas com cordões, para ficarem justas, mais meias e sapatilhas de luta. Tradicionalmente, ambos os lutadores usavam calças de cor preta, mas atualmente, em torneios, um usa calça vermelha e o outro, azul. Os principais golpes usados são agarrões e arremessos, e os lutadores são especialistas em rolar e se levantar de novo quando derrubados - porque simplesmente tocar as omoplatas no solo não caracteriza derrota, com o contato devendo ser de no mínimo 1 segundo. A luta é oficiada por três árbitros, sendo um central, que a acompanha junto aos pekhlevans no mat; um juiz de linha, que fica fora do mat mas pode apontar faltas, irregularidades, ou até mesmo a vitória, caso o árbitro central não a veja; e um chefe de arbitragem, que controla o tempo da luta e os pontos.

Além de vencer a luta fazendo com que o oponente toque as omoplatas no solo, um pekhlevan pode vencer por pontos: se ele conseguir fazer com que o oponente caia no chão de barriga para baixo, ganhará 1 ponto; conseguir fazer com que ele toque a cabeça ou os ombros no solo vale 2 pontos; fazer com que ele caia de costas no solo, sem tocar as omoplatas, vale 3 pontos; e conseguir levantar o oponente e jogá-lo no solo com força e amplitude vale 5 pontos. Da mesma forma, faltas e irregularidades durante a luta podem fazer com que os pekhlevans percam pontos. Outra forma de ganhar a luta é através de touché: se um dos lutadores tocar o solo com as duas mãos, e o outro conseguir segurá-lo de forma que o árbitro determine que é impossível para ele se levantar, a luta termina com vitória por touché para o que está segurando. Da mesma forma, se um lutador toca as omoplatas no solo durante menos de um segundo, mas, com o mesmo movimento, o oponente consegue fazer com que ele toque uma segunda vez, mesmo que também por menos de um segundo, o lutador perde por touché.

Como de costume, o gyulesh é uma luta antiquíssima, sendo praticada no Azerbaijão há séculos, e originalmente usada no treinamento de militares. Durante a época da União Soviética ele teve uma queda de popularidade, mas, desde a década de 1990, vem tendo um renascimento, graças aos esforços da Federação de Luta do Azerbaijão (AGF), que organiza vários torneios locais e regionais no país, bem como o campeonato nacional, disputado anualmente sempre nas cidades de Baku, Ganja ou Ordubad, que possuem arenas exclusivas para a sua prática. As categorias de peso no campeonato nacional são até 60 kg, até 70 kg, até 80 kg, até 90 kg, e acima de 90 kg, mas outros torneios podem ter categorias diferentes. Ainda não existe uma federação internacional ou um campeonato mundial, e, quando ocorre um torneio internacional, como os Jogos Mundiais Nômades, os lutadores de fora do Azerbaijão costumam ser originários de outras lutas, como o pahlavani ou até mesmo a luta olímpica.
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sábado, 14 de dezembro de 2024

Escrito por em 14.12.24 com 0 comentários

Lutas Tradicionais Turcas

Faz tempo que eu não escrevo um post sobre esportes, e um dos motivos é que às vezes eu acho que já falei de todos os "normais", só tendo sobrado aqueles super exóticos e difíceis de encontrar as informações que eu preciso. Essa semana, entretanto, eu estava pensando que seria legal fazer mais um post sobre esportes antes de o ano acabar, e me lembrei de que, quando fiz o post sobre os Jogos Mundiais Nômades, lá no início de 2022, comecei a reunir informações para escrever um post sobre as lutas tradicionais turcas, já que uma delas estava no programa das edições de 2016 e 2018, e pelo menos duas estavam confirmadas no programa da edição de 2022 (que acabou tendo quatro). Em determinado momento eu achei que estava ficando muito difícil reunir as informações e desisti, mas hoje resolvi tentar de novo, e, mesmo sem conseguir achar tudo o que eu queria, decidi escrever o post. Assim, hoje é dia de lutas tradicionais turcas no átomo!

Eu não faço ideia de quantas lutas tradicionais turcas existam - a Wikipédia lista 16, embora de 14 só cite o nome - mas, nesse post, eu vou falar de seis - não por acaso, as seis que são atualmente reguladas pela Federação Turca de Lutas Tradicionais (TGGF, da sigla em turco). Duas delas são disputadas em âmbito nacional e, até 2021, eram reguladas pela Federação Turca de Luta (TGF), mesmo órgão que regula a luta olímpica (luta livre e luta greco-romana) na Turquia; as outras quatro são disputadas somente a nível regional, e até 2021 eram reguladas pela Federação Turca de Esportes Tradicionais (GSDF), que regula vários esportes tradicionais da Turquia, como o okçuluk (tiro com arco tradicional turco) e o kizak (trenó tradicional turco). Todas as seis possuem praticantes fora da Turquia, mas não são populares internacionalmente a ponto de permitir a realização de campeonatos mundiais, de forma que a maior parte de seus campeonatos ocorre na Turquia, com a participação ou não de estrangeiros.

Todas as seis lutas que veremos hoje compartilham algumas características em comum. Pra começar, todas são exclusivamente masculinas e disputadas sobre grama natural, que ocupa um quadrado de 30 x 30 m, que pode ser delimitado por estacas e cordas, como se fosse um ringue de boxe, ou por uma linha branca pintada no chão, como as de um campo de futebol. Cada luta conta com apenas um árbitro, que acompanha os lutadores de perto, mas costuma ter também uma mesa, para contabilizar pontos, cronometrar o tempo, e, em alguns casos, chamar a atenção do árbitro para alguma falta ou conduta inadequada que ele deixou passar. Cada uma das lutas possui rituais que são realizados antes de os lutadores começarem a lutar, com esses rituais sendo diferentes dependendo da luta.

Outra coisa: "luta", em turco, é güreşi, por isso os nomes de todas as seis vão ter essa palavra no final; como nem sempre é possível escrever um ş, ela também costuma ser grafada gures, guresi ou gureshi. Eu vou usar gureshi porque é a grafia usada pela World Ethnogames Confederation (WEC), co-organizadora dos Jogos Mundiais Nômades, sendo, portanto, a grafia com a qual eu estou mais acostumado. Finalmente, no idioma turco existe i com pingo e i sem pingo, cada um com um som diferente; a WEC substitui todos os i sem pingo nos nomes das lutas e de alguns termos relacionados a elas por y, então eu vou fazer isso também - mas fiquem sabendo que, ao procurar por essas lutas na internet, vocês podem encontrar seus nomes escritos com i, com ou sem pingo, ao invés de y.

Tudo isso esclarecido, vamos começar por uma das duas lutas nacionais, que também é a mais conhecida fora da Turquia. Essa luta se chama yagli gureshi, nome que pode ser traduzido para "luta do óleo" - e que vem do fato de que os lutadores se lambuzam de óleo (na verdade, de azeite) antes da luta. Vale citar como curiosidade que, segundo a Capcom, esse é o estilo de luta praticado por Hakan, de Street Fighter IV.

A luta do óleo é considerada uma das formas de luta mais antigas do mundo, com registros históricos mostrando que ela era praticada na Suméria e na Babilônia. Ao longo dos anos, ela teria chegado à Grécia, e no século III a.C. teria um surto de popularidade no Império Romano. Segundo conta a história, mais ou menos nessa época ela seria extremamente popular nos Balcãs, que seriam invadidos pelo Império Otomano. Ao invés de como esporte, entretanto, os otomanos, antepassados dos atuais turcos, usavam a luta de forma cerimonial, durante festivais. Seria apenas por volta do século XIII, já na atual Turquia, que a yagli gureshi ganharia regras para poder ser disputada de forma competitiva.

O único uniforme que os lutadores da yagli guresh usam é uma calça feita de couro, com uma tira reforçada na cintura e pernas que acabam no meio das panturrilhas, de cor preta, chamada kisbet ou kispet. Originalmente, o kisbet era feito de couro de búfalo e podia pesar até 13 kg; atualmente, ele é feito de couro de boi, e pesa entre 1,8 e 2,5 kg quando untado - antes da luta, os lutadores untam todo o seu corpo, incluindo seus kisbets, com azeite de oliva, sendo que um lutador deve untar o outro, em sinal de respeito.

Um lutador é declarado vencedor caso alcance uma das seguintes condições de vitória: fazer com que o oponente se deite de costas no chão, com a barriga virada para cima; fazer com que o oponente se sente apoiando ambas as mãos no chão simultaneamente; fazer o oponente apoiar ambos os cotovelos no chão simultaneamente; fazer o oponente tocar o chão com o cotovelo e a mão do mesmo braço; levantar o oponente do chão e ou caminhar três passos ou fazer um giro de 360 graus. Curiosamente, as regras também dizem que, se um lutador conseguir abaixar o kisbet do oponente, expondo suas genitais, ele ganha a luta, embora atualmente essa prática seja desencorajada e já faça um bom tempo que ninguém ganha assim.

Existe ainda uma forma de ganhar a luta chamada paça kazyk, que seria equivalente a um nocaute ou ippon, e consiste em colocar os braços ao redor da cintura do adversário, em contato com a faixa do kisbet, durante três segundos, o que, como ambos estão lambuzados de óleo, é mais fácil de explicar do que de fazer. Originalmente, essa era a única forma de ganhar a luta, que não tinha duração pré-determinada, mas, em 1975, após uma luta que durou, acreditem ou não, dois dias, a TGF decidiu estabelecer novas condições de vitória e um limite de tempo para que a luta tenha um vencedor. A yagli gureshi é dividida em duas categorias, pehlivan ("lutadores", voltada aos iniciantes) e bashpehlivan ("mestres", voltada aos veteranos). Na categoria pehlivan, a duração máxima de uma luta é de 30 minutos, enquanto na bashpehlivan é de 40 minutos - ainda assim um tempo absurdo, se considerarmos que a maioria das lutas esportivas dura um décimo disso.

Assim como em qualquer luta esportiva, não basta o lutador chegar lá e querer agarrar oponente de qualquer jeito; há uma técnica própria para se fazer isso, com movimentos válidos e inválidos. Um lutador que insista em usar movimentos inválidos é advertido, e, dependendo do caso, desclassificado, sendo a desclassificação do oponente também uma forma de vencer a luta. Caso o tempo regulamentar termine sem vencedor, é feito um intervalo de cinco minutos após o qual começa uma prorrogação, de 10 minutos para pehlivan e 15 minutos para bashpehlivan. Durante essa prorrogação, os lutadores receberão pontos pela aplicação dos golpes, e, se nenhum dos lutadores alcançar uma condição de vitória, o lutador com mais pontos será o vencedor.

Torneios de yagli gureshi, amadores e profissionais, são disputados em toda a Turquia durante todo o ano, exceto durante o inverno, mas o mais famoso é o chamado Kyrkpynar, realizado anualmente no final de junho, durante três dias, na cidade de Edirne (antiga Adrianópolis). Com registros que comprovam que ele é disputado anualmente desde 1362, só não tendo sido realizado cerca de 70 vezes ao longo de 663 anos, o Kyrkpynar está no Livro Guinness dos Recordes como a competição esportiva mais antiga ainda continuamente realizada. Somente turcos podem participar, e, diferentemente de outras lutas esportivas, não há categorias de peso, sendo a divisão feita apenas entre pehlivan e bashpehlivan. O campeão da bashpehlivan recebe o título de "lutador chefe", que mantém até o torneio do ano seguinte, e quem ganha três anos seguidos recebe um cinturão de ouro 18 quilates.

Além da Turquia, outros países que possuem campeonatos profissionais de yagli gureshi são Japão, Bulgária, Grécia e Holanda - esse último, por incrível que pareça, o mais desenvolvido no yagli gureshi após a Turquia. Desde 1997, a Holanda realiza, em Amsterdã, o Campeonato Europeu, considerado o segundo torneio mais importante da yagli gureshi após o Kyrkpynar. Como, em 2000, o campeão europeu foi proibido de participar do Kyrkpynar por não ser turco, desde 2001 o Campeonato Europeu é aberto a lutadores de todas as nacionalidades, inclusive não-europeus, mas exceto turcos. De forma semelhante a outros torneios de luta, o Campeonato Europeu divide os lutadores em categorias de peso, que atualmente são até 80 kg, até 95 kg, até 110 kg e acima de 110 kg. A yagli gureshi fez parte do programa dos Jogos Mundiais Nômades de 2022, disputados em Izmir, Turquia, com essas mesmas categorias de peso, e aberta a lutadores de todas as nacionalidades.

A segunda luta disputada em âmbito nacional é a karakucak gureshi, que surgiu dentre o povo oghuz, que se formou na Ásia Central por volta do século VIII e migrou para a Anatólia no século XIII; hoje, a maior parte da população da Turquia é descendente dos orghuz, que se converteram ao islamismo no século XI. Graças a uma revisão das regras feita pela TGF em 1975, atualmente a karakucak gureshi é bastante parecida com a yagli gureshi, com a principal diferença sendo que, na karakucak gureshi, não é usado qualquer tipo de óleo. O uniforme da karakucak gureshi também é diferente, embora semelhante: chamado pirpit, se parece com uma bermuda, é feito de lona, e normalmente são usadas as cores azul ou verde.

Outra diferença notável é que, na karakucak gureshi, não basta agarrar o pirpit do adversário (nem baixá-lo e deixar seu pirpit à mostra, desculpem o trocadilho), sendo essencial conseguir uma das seis outras condições de vitória. Uma luta da karakucak gureshi também é bem mais curta, durando apenas seis minutos, com uma prorrogação de três minutos caso não haja vencedor. Assim como na yagli gureshi, durante a prorrogação os lutadores ganham pontos, que também determinarão o resultado caso nenhum dos dois consiga uma condição de vitória. A karakucak gureshi possui categorias de peso, com a TGGF definindo nada menos que dez delas: até 48 kg, até 53 kg, até 57 kg, até 62 kg, até 68 kg, até 74 kg, até 82 kg, até 90 kg, até 100 kg e até 130 kg.

Campeonatos de karakucak gureshi são disputados em todas as regiões da Turquia, e servem como classificatórias para o Campeonato Nacional, disputado anualmente - mas cuja popularidade não chega nem perto da do Kyrkpynar. Falando nisso, embora ambas sejam reguladas pela mesma federação e disputadas nacionalmente, a yagli gureshi é infinitamente mais popular que a karakucak gureshi, tanto em termos de praticantes quanto de público, por ser considerada a verdadeira luta tradicional do povo turco. Além de na Turquia, a karakucak gureshi é disputada profissionalmente na Mongólia, Azerbaijão, Turcomenistão e na Rùssia, mais especificamente nas repúblicas autônomas da Iacútia, Tataristão e Crimeia. Diferentemente do que ocorre com a yagli gureshi, estrangeiros podem participar do Campeonato Nacional de karakucak gureshi, mas devem se classificar através de um regional turco antes, o que acaba desanimando a maioria dos lutadores, que prefere lutar somente em seus países de origem.

De uns tempos pra cá, a karakucak gureshi vem tendo uma relação de amor e ódio com a luta olímpica: muitos dos lutadores turcos mais bem sucedidos na luta livre e na luta greco-romana, incluindo campeões europeus, mundiais e medalhistas olímpicos, começaram suas carreiras na karakucak gureshi, passando depois para a luta olímpica, existindo inclusive quem defenda que o treinamento na karakucak gureshi dá alguma vantagem na luta olímpica; o fato de a karakucak gureshi ser disputada em um gramado, mais barato que um mat, também torna mais fácil a iniciação dos jovens nesse tipo de luta. O problema é que, justamente pelo sucesso dos turcos na luta olímpica, a maioria dos jovens quer iniciar já nela, com o número de iniciantes na karakucak gureshi diminuindo a cada ano, e a TGF já fazendo campanhas para que ela não desapareça.

Vamos passar agora para as quatro lutas que eram antigamente reguladas pela GSDF. Como foi dito, essas são lutas regionais, e não são praticadas em todo o território da Turquia, embora duas delas sejam disputadas fora do país. A mais famosa das quatro é a ashyrtmaly aba gureshi, disputada nas regiões de Gaziantep, Adana e Osmaniye, além de no Azerbaijão, Turcomenistão, Tajiquistão e Rússia. Por causa disso, a ashyrtmaly aba gureshi seria a primeira das lutas tradicionais turcas a ser incluída no programa dos Jogos Mundiais Nômades, estando presente nas edições de 2016, 2018, 2022 e 2024. A ashyrtmaly aba gureshi é uma luta de cinturão, com muitas semelhanças com as que eu já abordei aqui no átomo; por causa disso, praticantes de outras lutas de cinturão às vezes se arriscam em torneios de ashyrtmaly aba gureshi.

O aba do nome da luta também é o nome do uniforme, que consiste em uma espécie de colete aberto na frente e uma bermuda, ambos feitos de couro e tradicionalmente de cor preta, embora possam ter detalhes em outras cores. Na ashyrtmaly aba gureshi, o colete é curto, terminando antes da cintura, e o cinturão é amarrado entre o colete e a bermuda. O colete e o cinturão, que possui uma forma própria para ser amarrado, não são fáceis de serem vestidos, e devem ser colocados e removidos à vista de todos, com cada lutador contando com um membro da arbitragem que o ajuda a se vestir antes da luta e se despir ao final.

Na ashyrtmaly aba gureshi só é permitido segurar o cinturão do adversário com a mão direita. No início da luta, um dos lutadores é sorteado, e já começa segurando o cinturão do adversário, mas com seu braço passando por cima do ombro esquerdo do outro. Cada lutador só pode usar as mãos para segurar o cinturão ou o colete do adversário, sendo proibido segurar braços, pernas, pescoço ou usar a mão para empurrar o oponente. A ashyrtmaly aba gureshi possui movimentos válidos tanto para a luta de pé quanto com os dois lutadores no solo, mas, se o árbitro decidir que a luta de solo está se prolongando sem que dela vá resultar um vencedor, ele pode interromper a luta e recomeçá-la com ambos os lutadores de pé. A luta de solo deve sempre começar em decorrência de um arremesso; um lutador se jogar no chão de propósito para forçá-la é considerado conduta antidesportiva.

Uma luta de ashyrtmaly aba gureshi é dividida em três sets de 10 minutos cada. O vencedor da luta será o lutador que vencer mais sets, mas não necessariamente dois, já que, caso o tempo se esgote sem que haja um vencedor, o set é considerado empatado - é possível vencer, portanto, com um set e dois empates. Caso todos os três sets terminem empatados, é disputada uma prorrogação sem limite de tempo, até sair um vencedor. Ainda é comum em alguns torneios da Turquia que a ashyrtmaly aba gureshi seja disputada sem limite de tempo; nesse caso, cada set só acaba quando um dos lutadores vence, e quem vencer dois sets primeiro ganha a luta. A ashyrtmaly aba gureshi possui categorias de peso, que, segundo a TGGF, são oito: até 55 kg, até 60 kg, até 65 kg, até 70 kg, até 75 kg, até 80 kg, até 90 kg e até 120 kg.

Um lutador será vencedor de um set caso consiga fazer com que o oponente se deite de bruços, com sua barriga tocando totalmente o chão; fazer com que o oponente toque com ambos os ombros simultaneamente no chão; ou fazer com que o oponente se deite de lado no chão, tocando com o quadril e o ombro do mesmo lado no chão. Caso o lutador que começou com o oponente segurando seu cinturão consiga fazer com que o oponente solte antes de ele mesmo segurar o cinturão do oponente, ele também ganha o set. Um lutador que insista em usar movimentos inválidos pode perder o set automaticamente, ou, se esse comportamento colocar a vida ou a integridade física do oponente em risco, pode perder toda a luta, independentemente de em qual set estava e quantos ele tinha ganhado.

A ashyrtmaly aba gureshi possui uma "parente" chamada kapyshmaly aba gureshi, disputada principalmente na região de Hatay; ambas descendem da mesma luta original, mas, ao longo dos anos, foram se tornando bem diferentes. Chamada muitas vezes apenas de aba gureshi, a kapyshmaly aba gureshi, que também é uma luta de cinturão, possui muito menos praticantes dentro da Turquia do que a ashyrtmaly aba gureshi, e também é bem menos popular internacionalmente, não sendo especialmente popular em nenhum outro país. A kapyshmaly aba gureshi fez parte do programa dos Jogos Mundiais Nômades de 2022.

Na kapyshmaly aba gureshi, o colete é feito de feltro e lã, sendo mais macio e mais comprido, terminando na altura das nádegas do lutador, e o cinturão é amarrado para fechar o colete, que pode ser de várias cores - normalmente com cada um dos lutadores usando um colete de um cor. Os lutadores podem segurar o cinturão com as duas mãos, e a luta de solo, que começa assim que um dos lutadores toca com pelo menos um de seus joelhos no chão por qualquer motivo, tem duração máxima de 1 minuto, com a luta sendo interrompida e recomeçando com os lutadores de pé. Também é proibido segurar qualquer parte do oponente que não seja o colete ou o cinturão, bem como empurrá-lo. Para ganhar um set, o lutador tem que fazer com que o oponente toque o chão com ambos os ombros simultaneamente, ou com que ele caia de costas, com a barriga virada para cima. Ninguém perde o set por soltar a mão do adversário, mas pode perder o set ou a luta caso insista em conduta faltosa. As categorias de peso são as mesmas da ashyrtmaly aba gureshi, mas a duração padrão de uma luta é a metade: três sets de cinco minutos cada, com prorrogação sem limite de tempo caso todos os três terminem empatados.

A terceira luta regional que veremos é a shalvar gureshi, originária da região de Kahramanmarash, mas também praticada no Irã, Mongólia, Azerbaijão, Quirguistão, Turcomenistão e Rússia. O nome da luta também vem de seu uniforme, o shalvar, uma bermuda bem justa feita de pelo de cabra, tradicionalmente tingida na cor verde; se a luta não for na grama, os lutadores também usam meias e sapatilhas. Falando nisso, a shalvar gureshi é a única das lutas que veremos hoje que não precisa obrigatoriamente ser disputada na grama, com a TGGF permitindo que ela seja disputada em ambiente interno, com piso antiderrapante e não abrasivo, na areia, ou até mesmo na neve, o que faz com que ela possa ser disputada durante todo o ano. Também é a única que veremos hoje que já teve um campeonato mundial, disputado em 2020 em Kahramanmarash. A shalvar gureshi também fez parte do programa dos Jogos Mundiais Nômades de 2022.

A shalvar gureshi é uma luta de submissão, na qual os lutadores, que durante toda a luta ficarão meio curvados para a frente, tentarão utilizar os movimentos válidos para colocar os oponentes deitados no chão e imobilizá-los, ganhando pontos de acordo com o tipo de imobilização. Se um dos lutadores conseguir imobilizar o oponente deitado de costas, de barriga para cima, ele ganha a luta instantaneamente. Lutadores que infrinjam as regras recebem advertências e penalidades, que podem fazer com que eles percam pontos. Uma luta dura 10 minutos, ao fim dos quais quem tiver mais pontos vence; se, ao final do tempo, a luta estiver empatada, começa uma prorrogação que dura até um dos lutadores pontuar. É obrigatório lutar de pé; se os lutadores forem ao solo e uma imobilização não começar imediatamente, o árbitro interrompe a luta e manda eles recomeçarem de pé. As categorias de peso são as mesmas da karakucak gureshi.

Aliás, exceto por alguns movimentos que são válidos em uma das lutas mas não são na outra, pelo fato de haver pontuação desde o início, e por só haver uma condição de vitória instantânea, a shalvar gureshi é bem parecida com a karakucak gureshi, o que é apontado como principal entrave à sua popularização no restante da Turquia; recentemente, entretanto, devido ao fato de poder ser praticada em ambiente fechado, a shalvar gureshi vem se popularizando no restante da Europa, principalmente em países com muitos imigrantes turcos, como a Alemanha, o que pode levar à curiosa situação de a luta ter mais praticantes fora da Turquia do que dentro dela. Apesar das semelhanças entre os estilos, lutadores turcos de shalvar gureshi não costumam migrar nem para a karakucak gureshi, nem para a luta olímpica, se orgulhando de defender uma luta tradicional turca com raízes culturais em sua região.

A última luta que veremos hoje é a kushak gureshi, que, de certa forma é a mais diferente: enquanto as outras três lutas regionais se originaram e hoje são praticadas em regiões do sul da Turquia, próximas à fronteira com a Síria e o Iraque, a kushak gureshi é praticada na região de Eskishehir, no norte, próxima à porção europeia da Turquia. A kushak gureshi teria nascido na Crimeia e sido levada por imigrantes da etnia tatar para a Turquia; por causa disso, na Turquia, fora de Eskishehir, ela também é conhecida como tatar gureshi. Ela também é praticada no Turcomenistão, na Romênia, onde por alguma razão é bastante popular, e nas repúblicas autônomas russas da Iacútia e do Tataristão.

A kushak gureshi é uma luta de cinturão; o uniforme dos lutadores consiste de um camisão de mangas curtas e gola em V, uma calça do mesmo tecido, ambos levemente folgados, e uma faixa do mesmo tecido, o cinturão, amarrado na cintura. No início da luta, um lutador segura o cinturão do outro com ambas as mãos, posicionando a mão direita pelo lado de dentro da faixa e a mão esquerda pelo lado de fora. Um lutador que solte qualquer uma das mãos, exceto se em decorrência de uma ordem do árbitro, é imediatamente desclassificado, com a vitória indo para o outro. Mas o objetivo principal da luta não é desclassificar o oponente, e sim derrubá-lo. Derrubar o oponente de forma que ambos os seus ombros toquem o chão simultaneamente resulta em vitória automática, mas derrubá-lo de forma com que ele caia de costas, de lado ou sentado também vale pontos. A luta dura três minutos, ao fim dos quais quem tiver mais pontos vence. Caso não haja um vencedor, é disputada uma prorrogação que dura até alguém pontuar. As categorias de peso são as mesmas da ashyrtmaly aba gureshi.

De todas as lutas tradicionais turcas da TGGF, a kushak gureshi é a mais ameaçada. Devido ao grande número de lutas de cinturão populares na Ásia, como o kurash, o alysh, o koresh e o guresh, muitos lutadores de kushak gureshi preferem participar de torneios internacionais dessas lutas ao invés de dos torneios regionais e nacional turcos, que, ano após ano, se veem esvaziados. Os maiores investimentos da TGGF, atualmente, são voltados à yagli gureshi, à ashyrtmaly aba gureshi e à shalvar gureshi, talvez por eles considerarem essas lutas mais legitimamente turcas que as demais. Muitos pedem para que, assim como a shalvar gureshi, a kushak gureshi possa ser disputada oficialmente em ambiente fechado, mas os puristas argumentam que ela então se tornaria muito parecida com as lutas de cinturão da Ásia Central, perdendo sua identidade. Talvez a inesperada popularidade da luta na Romênia seja boa para sua preservação.
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domingo, 25 de abril de 2021

Escrito por em 25.4.21 com 0 comentários

Pancrácio

No fim do ano passado, eu fiz um post sobre lutas de submissão, que complementava outro, sobre luta olímpica, mais antigo, e no qual eu falei sobre as lutas esportivas reguladas pela UWW que não haviam sido abordadas naquele primeiro post. Ficou faltando uma, porém, o pancrácio, sobre o qual eu planejava falar antes do fim do ano. Só que, como de costume, eu esqueci, e só lembrei agora, depois de fazer o post sobre kudô. Como tarde é sempre melhor do que nunca, hoje é dia de pancrácio no átomo!

Embora "pancrácio" se pareça com um nome masculino antigo ("chamando o Sr. Pancrácio da Silva"), essa é a versão em português do termo grego pankration, que significa algo como "todos os estilos" - pan significa "tudo", enquanto kratos significa "força" ou "poder". O pancrácio, portanto, era uma versão grega do MMA, um tipo de luta onde os lutadores podiam atingir diretamente os oponentes (com socos, chutes e outros golpes, como joelhadas), derrubá-los (com arremessos, rasteiras e outros métodos) e seguir lutando no chão (com técnicas de imobilização e estrangulamento). É um dos poucos esportes do mundo inventados para uma ocasião especial - segundo registros, ao invés de se desenvolver naturalmente, foi criado especificamente para as Olimpíadas do ano 648 a.C. - e quase não tinha regras: praticamente, valia bater no adversário de qualquer forma que quisesse, sendo importante apenas vencer. Ah, e a vitória não era por pontos, ocorrendo apenas quando um dos lutadores desistia ou era nocauteado - ou morria.

Depois que o pancrácio foi inventado, ocorreu uma espécie de retcon nas lendas gregas, para dizer que heróis como Hércules e Teseu eram lutadores de pancrácio - a versão mais famosa da lenda de Hércules, por exemplo, diz que ele teria derrotado o Leão da Nemeia com um golpe de pancrácio. Segundo registros, entretanto, a luta que esses heróis teria praticado se chamava panmachon, não porque eles eram machões, e sim porque mache significa "combate", então seria algo como "combate total". O panmachon era uma luta fictícia, no sentido de que ninguém nunca se preocupou em estabelecer quais seriam suas técnicas válidas ou fundamentos, mas, depois da invenção do pancrácio, os dois termos, pankration e panmachon, passaram a ser sinônimos, até que panmachon caiu em desuso, e tudo passou a ser chamado de pancrácio.

A maioria dos lutadores de pancrácio (conhecidos até hoje como pancratistas) começavam suas carreiras no pygme, a versão grega clássica do boxe, ou no pále, a versão grega clássica da luta olímpica. Apesar de golpes como socos e chutes serem permitidos e bastante usados, pancratistas costumavam se tornar superespecialistas na luta de solo, capazes de encerrar qualquer combate em segundos depois que ambos iam pro chão - de fato, sua eficiência era tamanha que não era incomum um dos pancratistas ter um braço ou perna quebrados durante uma imobilização ou morrer em decorrência de um estrangulamento, o que era totalmente permitido pelas regras, que estipulavam que a morte de um dos pancratistas resultava em vitória automática para o outro. Uma história famosa é a de Arraquião da Figália, o primeiro campeão olímpico póstumo: durante a final do torneio Olímpico de 564 a.C., no qual defendia o título que havia conquistado quatro anos antes, Arraquião estava sendo estrangulado, quando conseguiu agarrar o tornozelo do oponente e quebrá-lo; não suportando a dor, o oponente desistiu, mas Arraquião, debilitado pelo estrangulamento, morreu em seguida. Os árbitros, então, decidiriam coroar seu cadáver e enviá-lo para a Figália com honras de herói.

Por causa desse potencial letal, no fim do século V a.C. o pancrácio se tornaria disciplina obrigatória no treinamento militar dos exércitos de diversas cidades-estado gregas, inclusive no dos temidos espartanos e no da famosa falange macedônica. Alguns desses soldados se tornariam campeões olímpicos, como Dióxipo de Atenas, que comandou o exército de Alexandre, o Grande, em sua incursão à Ásia, e foi campeão nas Olimpíadas do ano 336 a.C. Após a invasão da Grécia pelos romanos, o pancrácio seria levado a Roma como um esporte gladiatorial, não para ser praticado pelos cidadãos, e sim pelos gladiadores para diverti-los. Com o decreto do Imperador Teodósio I, que proibiu todos os esportes gladiatoriais em 393 d.C., o pancrácio foi abolido em todo o Império Romano, inclusive na Grécia, e acabou desaparecendo. Ao contrário do pále, porém, do qual só restaram representações em imagens e registros dos resultados de algumas lutas, do pancrácio sobreviveriam relatos bastante detalhados de alguns combates, bem como tábuas de regras.

Ainda assim, talvez por ser considerado uma luta violenta, quando o Barão de Coubertin decidiu criar as Olimpíadas da Era Moderna, no final do século XIX, o pancrácio não estava dentre os esportes contemplados no programa. Ao invés disso, o Comitê Organizador decidiria por um torneio de luta greco-romana, aquela que, segundo eles, mais se aproximava das lutas da antiguidade, mas sem categorias de peso ou limite de tempo, exatamente como era na Grécia Antiga. Esse torneio não faria muito sucesso, e a luta olímpica ficaria de fora da edição de 1900, voltando em 1904 com um torneio de luta livre, que era mais popular nos Estados Unidos que a greco-romana. Após algumas confusões ocorridas em 1908 e 1912 - quando a final dos meio-pesados da luta greco-romana durou nove horas e terminou sem vencedor, por falha do regulamento - as federações nacionais de luta de vários países decidiriam se unir para fundar uma federação internacional, que ficaria responsável por todos os torneios internacionais de expressão, evitando que o esporte virasse uma bagunça. Por causa da Primeira Guerra Mundial, essa federação só seria fundada em 1921, com o nome de Federação Internacional de Lutas Associadas (FILA, na sigla em francês), mudando de nome, em 2014, para União Mundial de Luta (UWW, da sigla em inglês).

Quando a FILA foi fundada, ela só regulava a luta greco-romana e a luta livre, considerando ambas estilos diferentes de um mesmo esporte, o qual chamou de luta olímpica. Hoje, a UWW regula um total de dez esportes, dos quais eu já falei sobre nove, sendo o pancrácio o último que falta. Ao contrário do que possa parecer, entretanto, o pancrácio não foi um dos primeiros esportes regulados pela UWW, e sim um dos mais recentes, só tendo entrado para a lista oficial de esportes regulados em 2010. Isso porque o pancrácio regulado pela UWW (talvez felizmente) não é o mesmo da Grécia Antiga, e sim uma versão modernizada, chamada por alguns de "pancrácio moderno" - e que, em linhas gerais, pode ser considerado como a versão UWW do MMA.

O pancrácio moderno foi uma criação de Jim Arvanitis, nascido em 1942 em Boston, Estados Unidos, filho de um casal de imigrantes gregos. Desde criança, Arvanitis era apaixonado por duas coisas: esportes e a Grécia. Por causa disso, ele não somente fez questão de aprender grego e sobre a história e a mitologia do país de seus antepassados, como também se tornou um atleta de destaque no colégio no atletismo e no basquete, estabelecendo três recordes municipais que duram até hoje, os de maior número de flexões de braço seguidas, maior número de flexões na barra seguidas, e maior número de pontos em um jogo colegial de basquete. Nem tudo eram flores para Arvanitis, porém, e ele frequentemente sofria bullying de três meninos mais velhos que moravam em sua rua; pensando em aprender a se proteger, ele começaria a praticar luta livre, passando depois para o boxe, onde se tornaria campeão regional do noroeste.

Apesar de se destacar no boxe, a paixão de Arvanitis era a luta livre, principalmente porque seu pai tinha um restaurante onde almoçavam astros da WWE, aquela liga norte-americana na qual as lutas são verdadeiros espetáculos (e que nada têm a ver com a luta livre da UWW); Arvanitis sabia que as lutas da WWE eram coreografadas, mas mesmo assim adorava passar suas tardes conversando com os lutadores e discutindo técnicas de luta, e, quando ficou mais velho, recebeu um convite de Lou Thesz, Bruno Sammartino e Walter "Killer" Kowalski para treinar com eles em seu ginásio. Lá, ele teria seu primeiro contato com as artes marciais orientais, e começaria a praticar também muay thai, savate e judô, além de se interessar por estudar em detalhes as lutas de diferentes culturas.

Sem conseguir optar por um único estilo de luta, Arvanitis se propôs a criar um que reunisse, em sua opinião, o que os outros tivessem de melhor. A princípio, ele chamaria essa nova arte marcial de mu tau, mas, achando que esse nome não pegaria, e se lembrando das histórias que havia lido sobre o pancrácio, decidiria chamá-lo de neo-pankration. Desde o início, Arvanitis deixaria claro que sua intenção não era recriar o pancrácio da Grécia Antiga, e sim criar uma arte marcial mista totalmente nova; ele escolheria o nome pancrácio puramente por orgulho de suas raízes gregas, mas, para diferenciar sua criação da luta original, ele "americanizaria" a pronúncia - em grego, é algo como "pangratíon", enquanto a criada por Arvanitis se pronuncia "pancrêichon". Arvanitis publicaria o primeiro livro de regras do pancrácio em 1969, e abriria sua primeira academia dois anos depois, em 1971, quando começaria a realizar demonstrações do esporte por toda a região da Nova Inglaterra. O pancrácio começaria a se popularizar como esporte, contudo, a partir de 1974, pois, em novembro de 1973, Arvanitis estaria na capa da revista Black Belt, a mais importante publicação sobre artes marciais dos Estados Unidos, o que ajudaria a popularizar o pancrácio e a espalhá-lo pelo país.

Arvanitis é considerado não só o pai do pancrácio moderno, mas também o pai do MMA, pois os fundamentos criados por ele seriam a base para torneios como os de vale-tudo da década de 1990, que dariam origem ao MMA como existe hoje. Como todo bom mestre de artes marciais, Arvanitis criou o pancrácio não para ser um esporte, e sim uma filosofia de vida, ou seja, ele nunca fundou uma federação nem organizou torneios, ficando essas funções ao longo dos anos com vários órgãos diferentes, que faziam pequenas modificações nas regras em relação aos golpes válidos, pontuação e outros detalhes que não modificassem a essência do pancrácio. Hoje, dentre as federações internacionais que regulam o pancrácio, podemos citar o Conselho Mundial de Pancrácio (WPC), a Federação Mundial de Pancrácio (WPF) e a Federação Internacional de Pancrácio (IFPA); existem também organizações privadas que realizam torneios de pancrácio, ao estilo UFC, como a norte-americana Modern Fighting Pankration (MFC) e a japonesa Pancrase Hybrid Wrestling (PANCRASE).

A versão do pancrácio regulada pela UWW é a hoje conhecida como pancrácio athlima, e foi criada na década de 1990, na Grécia, pelo lutador e professor de pancrácio Lazaros Savvidis. Hoje considerado um estilo em separado, o pancrácio athlima (palavra grega que significa "disciplina") é uma luta de baixo impacto, cujo foco está mais na realização dos golpes que em sua potência, com o intuito de Savvidis sendo permitir que pessoas de qualquer idade praticassem o pancrácio com menos riscos de lesões. Savvidis fundaria a Federação Grega de Pancrácio Athlima em 1996 e a Federação Internacional de Pancrácio Athlima (IFPa) em 1999, e negociaria diretamente com a UWW a inclusão do pancrácio como um dos esportes oficiais da federação em 2010, visando sua futura inclusão nas Olimpíadas. A IFPa ainda existe e, além dela e da UWW, temos também a Federação Mundial de Pancrácio Athlima (WPAF), fundada em 2002. O Brasil é membro de todas as três.

Pelas regras da UWW, que são as que interessam para esse post, os golpes válidos são socos, chutes, cotoveladas e joelhadas, desde que não sejam desferidos contra o pescoço, nuca, garganta, articulações, virilhas, rins ou coluna do oponente, nem acertem abaixo dos joelhos. Um golpe pode valer de 1 a 3 pontos, sendo que valem 1 ponto, com os pancratistas de pé, um soco contra qualquer parte válida do corpo, um chute contra as coxas, ou uma cotovelada que acerte acima da cintura e, com os pancratistas no solo, um soco contra qualquer parte do corpo, ou uma joelhada que acerte acima da cintura; valem 2 pontos, com os pancratistas de pé, um chute ou joelhada que acertem acima da cintura; e um chute contra a cabeça, com os pancratistas de pé, vale 3 pontos. Arremessos, chamados projeções, também valem pontos, com uma projeção que faça o oponente cair sentado ou uma projeção iniciada com ambos os pancratistas no solo valendo 2 pontos, e uma projeção que faça o oponente cair de costas ou de lado valendo 3 pontos. Para pontuar, além de atingir uma área válida e de ser um golpe válido do pancrácio (nada de chutar ou socar de qualquer jeito), um golpe ou projeção tem de começar dentro da área válida de luta (mesmo que termine fora dela), ter a distância, velocidade e finalização adequadas, e ter sido visto por pelo menos dois dos três árbitros; golpes simultâneos (os dois pancratistas chutarem um ao outro ao mesmo tempo, por exemplo) não valem pontos.

Uma vez que ambos os pancratistas estejam caídos, começa a parte da luta de solo, na qual ainda é possível usar socos, cotoveladas, joelhadas e até arremessos (mas não chutes), mas na qual o objetivo é usar uma das técnicas válidas do pancrácio para imobilizar o oponente, usando seus braços, pernas, ou a gola da camisa do oponente. Um lutador que esteja sentindo dor ou desconforto pode bater com a mão ou pé três vezes seguidas no chão para desistir da luta; caso isso não aconteça, um lutador que consiga manter uma imobilização por 5 segundos ganha 1 ponto, por 10 segundos ganha 2 pontos, e por 15 segundos ganha 3 pontos. Ao final do tempo da imobilização, após um dos pancratistas conseguir se livrar de uma imobilização, ou caso ambos os pancratistas saiam da área válida de luta enquanto estiverem lutando no solo, o árbitro interrompe a luta e a reinicia com ambos os pancratistas de pé; não é possível vencer uma luta de pancrácio por nocaute ou ippon.

Durante a luta, os pancratistas também podem cometer faltas, que levam a advertências. As faltas podem ser de duas categorias, passividade ou ação ilegal, sendo que a primeira advertência em cada categoria resulta apenas em aviso, a segunda em 1 ponto para o adversário, e a terceira em desclassificação (desde que seja na mesma categoria; se um lutador receber uma advertência por passividade e uma por ação ilegal, são dois avisos e nenhum ponto para o adversário). Passividade inclui fugir do oponente, não aplicar golpes, ficando só esperando e se defendendo, sair da área válida de luta de propósito, virar de costas para o oponente, e desrespeitar as instruções do árbitro. Ações ilegais incluem usar um golpe inválido (como uma cabeçada), acertar uma área do corpo proibida, chutar o oponente no solo, ferir o adversário propositalmente, não dar condições de o adversário desistir ou manter a imobilização depois que ele tiver desistido, e realizar ações desleais (como morder, cuspir ou puxar o cabelo do oponente). Dependendo da gravidade da ação ilegal (como, por exemplo, se um lutador quebrar o braço do outro de propósito), um lutador pode ser desclassificado instantaneamente, mesmo que seja sua primeira advertência.

O pancrácio é disputado em uma área chamada palestra, que é feita de material não-abrasivo e antiderrapante. A área total de luta é um quadrado de 10 ou 12 metros de lado, com um círculo de 8 ou 10 metros de diâmetro em seu interior; o círculo delimita a área válida de luta, sendo o restante do quadrado a área de segurança. No centro do círculo há um menor, com 1 ou 3 metros de diâmetro, dentro do qual os pancratistas começam a luta. Tradicionalmente, a palestra é azul e branca, mas, em torneios da UWW, a tendência é que tenha as mesmas cores do mat da luta olímpica, amarelo e vermelho. Assim como outras lutas desportivas (e diferentemente de como era na Grécia Antiga), no pancrácio ocorre a divisão por categorias de peso, para maior justiça nas lutas. No masculino há sete categorias de peso (até 60 kg, até 66 kg, até 71 kg, até 77 kg, até 84 kg, até 92 kg, até 100 kg e acima de 100 kg), e no feminino há cinco (até 53 kg, até 58 kg, até 64 kg, até 71 kg e acima de 71 kg).

O uniforme do pancrácio se chama endyma, e é bem simples, consistindo apenas de uma camisa de vestir pela cabeça, com gola em V e mangas até os cotovelos, e de uma calça com elástico e cordão na cintura, com pernas até os tornozelos; mulheres podem usar uma camiseta branca ou top esportivo por baixo da camisa, em nome da decência. Em competições oficiais da UWW, um dos pancratistas sempre usa endyma branca, e o outro sempre usa endyma azul; os árbitros também usam endymas, de cor vermelha. Os equipamentos de proteção obrigatórios são luvas próprias para pancrácio, caneleiras e protetores de virilhas, sendo opcional o protetor de gengiva, como o do boxe; mulheres opcionalmente podem usar protetor para os seios. Qualquer tipo de bandagem é proibido, exceto em caso de ordens médicas - no início, pancratistas enfaixavam os punhos e tornozelos para aumentar a potência dos golpes, daí a proibição.

Uma luta no pancrácio dura cinco minutos, sem intervalo, e é oficiada por um árbitro central, que fica dentro da área de luta acompanhando os pancratistas, e dois auxiliares, que ficam em suas laterais e podem avisar ao central caso ele não veja uma pontuação ou falta, além de uma mesa responsável por anotar os pontos e contar o tempo. Ao fim do tempo regulamentar, o lutador com mais pontos vence; caso haja empate, é disputada uma prorrogação de um minuto, e, caso o empate persista, o vencedor é escolhido por decisão dos árbitros. Também é importante dizer que cada lutador tem um total de um minuto para atendimento médico, durante o qual o relógio não anda, podendo ser dividido em pequenos atendimentos de alguns segundos cada, mas, se esse minuto for excedido, o lutador é desclassificado.

Além do pancrácio athlima, a UWW regula duas disciplinas chamadas polidamas e palesmata, que fazem parte do treinamento do pancrácio. A polidamas é uma luta coreografada, criada tendo como inspiração a história de Polidamas de Escotusa, campeão olímpico de pancrácio no ano 408 a.C. Descrito como "imenso" e "fortíssimo", Polidamas teria enfrentado e vencido nu e desarmado três dos guardas pessoais do Imperador Dario II da Pérsia, conhecidos como "os Imortais"; outras proezas atribuídas a ele foram matar um leão com as próprias mãos e interromper uma carruagem que vinha a todo galope agarrando-a pela traseira. Segundo os registros, Polidamas morreu quando ele e alguns amigos estavam em uma caverna que começou a desmoronar; acreditando que sua grande força seria capaz de salvá-los, ao invés de correr, ele segurou o teto com ambas as mãos. Isso teria dado tempo para que seus amigos saíssem da caverna e se salvassem, mas Polidamas morreria soterrado.

Mas o que nos interessa é a luta de Polidamas contra os Imortais, na qual a disciplina foi inspirada. Uma apresentação de polidamas conta com quatro pancratistas, um que será o defensor, representando Polidamas, e três que serão os atacantes, representando os Imortais; todos os quatro usam camisas brancas e calças azuis. As equipes são mistas, podendo contar com qualquer número de homens e mulheres, inclusive uma defensora mulher contra três atacantes homens. Uma apresentação dura 2 minutos, durante os quais a equipe deve apresentar pelo menos seis movimentos diferentes - quatro movimentos são obrigatórios e devem constar de todas as apresentações, mas os demais são de livre escolha dos pancratistas. Os golpes válidos no polidamas incluem todos os válidos no pancrácio athlima e mais alguns próprios, que buscam copiar os golpes usados na antiguidade; todos eles, como já foi dito, são feitos de forma coreografada, sem impacto e sem a possibilidade de causar qualquer dano aos lutadores. Algumas apresentações incluem o uso de armas por parte dos atacantes (mas nunca do defensor, já que Polidamas estava desarmado - e nu, embora no polidamas o defensor use endyma), que podem ser de três tipos: um bastão de madeira com 2 cm de diâmetro e entre 50 e 60 cm de comprimento, uma adaga feita de madeira ou borracha com entre 1 e 2 cm de largura e 20 cm de comprimento, ou uma lança de madeira com ponta de borracha de 1,85 m de comprimento e 2 cm de diâmetro.

Já a competição de palesmata é uma recriação de uma luta da antiguidade, efetuada por uma dupla de pancratistas. Competições da UWW são sempre mistas, contando sempre com um homem e uma mulher, mas outras organizações realizam competições de palesmata masculinas e femininas. Uma apresentação de palesmata dura 2 minutos, e os movimentos são totalmente de livre escolha dos participantes, sem quaisquer movimentos obrigatórios; a única obrigatoriedade é que a luta tenha uma parte de pé e uma de solo, e que termine com uma "finalização", representando a desistência ou morte do perdedor. Assim como no polidamas, a luta é coreografada, sem dano aos participantes - tanto que as regras do palesmata determinam que, se houver qualquer sinal de dano, visível ou não, a dupla é desclassificada. Assim como na polidamas, os golpes válidos na palesmata incluem todos os do pancrácio athlima e mais alguns próprios, que buscam copiar os golpes usados na antiguidade - com os "golpes próprios" da polidamas e da palesmata sendo, em sua maioria, diferentes uns dos outros.

Tanto a apresentação de polidamas quanto a de palesmata são julgadas por quatro árbitros, cada um sentado de um dos lados da palestra, com um deles sendo considerado o principal; eles avaliarão a dinâmica dos movimentos, o tempo correto dos ataques e defesas, a distância apropriada para aplicar os golpes, a atenção e concentração dos participantes e a variedade de movimentos, e darão cada um uma nota de 0 a 9, incluindo meios pontos, com a maior e a menor notas sendo descartadas e as outras duas somadas para determinar a nota final. Tanto na polidamas quanto na palesmata, penalidades de 0,3 ponto podem ser aplicadas à nota final por exceder os dois minutos de apresentação; na palesmata também são aplicadas penalidades por excesso de teatralidade (se os árbitros considerarem que a dupla está mais preocupada com a estética da apresentação do que com a eficiência dos golpes) e por sair da área de luta de propósito, enquanto na polidamas podem ser aplicadas penalidades por pisar fora da área válida de luta, exceto se for para recuperar uma arma que caiu. Após todas as equipes terem se apresentado, aquela com a maior nota final será a vencedora.

Desde 2014, a UWW também regula o pancrácio de alto impacto, baseado no criado por Arvanitis; suas duas únicas diferenças em relação às regras do pancrácio athlima, entretanto, estão na lista dos golpes válidos, que incluem alguns muito mais potentes que os da outra versão, e no fato de que é possível vencer uma luta por nocaute, da seguinte forma: se, em decorrência de um golpe quando os dois pancratistas estavam de pé, um deles cair, o árbitro abre contagem até 8, e o lutador que o derrubou ganha 4 pontos; se ele não se levantar antes do 8, o lutador que o derrubou vence a luta automaticamente, por nocaute. Um lutador que seja derrubado pela segunda vez em uma mesma luta tem direito a uma nova contagem até 8, mas um que é derrubado pela terceira vez é automaticamente desclassificado por nocaute técnico. Como os golpes são mais potentes, as luvas usadas pelos pancratistas são diferentes, semelhantes às do boxe, e é obrigatório um capacete de proteção. Ao invés do endyma, os lutadores usam uma camiseta de mangas curtas e uma bermuda até os joelhos; um dos lutadores sempre usa camiseta, luvas e caneleiras azuis, enquanto o outro usa vermelhas, e ambos usam bermudas pretas.

O mais importante torneio de pancrácio da UWW é o Campeonato Mundial, organizado anualmente desde 2010 com torneios masculinos e femininos de pancrácio athlima, com as competições de polidamas e palesmata tendo sido incluídas em 2011 e as de pancrácio de alto impacto masculino em 2014. Curiosamente, nenhuma das edições foi disputada na Grécia - embora a de 2019 tenha sido disputada em Roma.
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domingo, 28 de março de 2021

Escrito por em 28.3.21 com 0 comentários

Kudô

Hoje eu vou falar sobre mais uma luta esportiva, o kudô. Eu descobri o kudô quando estava pesquisando sobre os World Games, já que o comitê organizador da edição de 2013, em Cali, Colômbia, tentou incluí-lo sem sucesso no programa. Intrigado sobre o que seria um kudô, dei uma pesquisadinha, e acabei achando algumas informações interessantes. Essa semana, enquanto pensava sobre qual assunto poderia escrever, me lembrei do kudô e achei que seria uma boa.

O kudô foi inventado pelo japonês Azuma Takashi, nascido em 1949, que, aos 16 anos, decidiria praticar judô em um clube mantido por sua escola, em sua cidade natal de Kesennuma. Após concluir o colégio, Takashi se alistaria no exército, onde teria contato também com o caratê, e, ao dar baixa para estudar na Universidade de Waseda, em 1972, decidiria praticar o caratê kyokushin.

Criado em 1964 por Masutatsu Oyama, mais conhecido como Mas Oyama, que nasceu em 1923 na Coreia com o nome de Choi Yeong-eui e imigrou para o Japão em 1938, o caratê kyokushin (palavra que, em japonês, significa "verdade suprema") é uma variante extremamente focada no contato físico, com treinos exaustivos e rígida disciplina, que hoje não tem muito apelo entre os jovens (mais da metade dos praticantes tem 40 anos ou mais), mas que, na época em que Takashi começou, era uma novidade bastante atraente no Japão. Takashi se dedicaria ao kyokushin pela maior parte de sua vida, alcançando o nono dan, além de seguir com o judô por um bom tempo, chegando ao terceiro dan.

Mesmo sendo um praticante e admirador, Takashi tinha severas críticas ao kyokushin. Ele percebeu, por exemplo, que lesões graves à cabeça dos praticantes eram comuns, com muitos tendo de inclusive abandonar o esporte. Ele também era da opinião de que os lutadores mais baixos ficavam em grande desvantagem quando enfrentavam lutadores mais altos - tendo 1,65m, ele havia tomado tantos golpes na face desferidos por lutadores mais altos que seu nariz ficou permanentemente torto. Takashi era especialista em duas técnicas, a da cabeçada e a de segurar o oponente pelo colarinho, mas, em competições, raramente tinha chance de utilizá-las, pois quase todos os lutadores preferiam atacar com chutes o tempo todo, o que lhes possibilitava manter distância do oponente e marcar mais pontos.

Com tudo isso em mente, em 1981, sem abandonar o kyokushin, Takashi decidiria criar sua própria arte marcial, à qual daria o nome de caratê daidojuku (palavra que significa algo como "luta corpo a corpo"). No início, o caratê daidojuku era pouco mais que uma mistura do kyokushin com o judô, usando as técnicas de cada um que Takashi considerava mais efetivas para criar um estilo versátil e realístico, tendo como foco que, mesmo em competições esportivas, a impressão fosse de que os lutadores estavam se enfrentando pra valer. Ao longo das décadas de 1980 e 1990, Takashi estudaria outras lutas desportivas, e selecionaria técnicas de boxe, muay thai, jiu jitsu e até mesmo do wrestling norte-americano que achava que poderiam contribuir para seu daidojuku. No início da década de 1990, ele decidiria que os praticantes precisariam usar proteções, como capacetes, pois lutar apenas com o gi estava resultando em muitas lesões.

Tudo isso ocorreria enquanto o estilo já estava sendo ensinado a alunos: Taksahi abriria seu primeiro dojo já em 1981, na cidade de Miyagi, e naquele mesmo ano organizaria seu primeiro torneio entre seus alunos. Aos poucos, outros dojo começaram a surgir, sendo que alguns, sem saber se poderiam ou não usar o nome daidojuku, optariam por chamar o estilo, idêntico ao criado por Takashi, de caratê kakuto ou caratê hokutoki. O daidojuku se beneficiaria bastante do boom das artes marciais que ocorreria no Japão na década de 1990, principalmente por ser considerado uma arte marcial mista, uma das poucas com dojo no Japão na época. Lutadores de daidojuku ajudariam a popularizar o famoso torneio K-1, e um aluno de Takashi, Minoki Ichihara, seria o primeiro japonês a aceitar participar do UFC, enfrentando o brasileiro Royce Gracie (e perdendo); na época, torneios de artes marciais mistas não eram vistos como "sérios", e os dojo de artes marciais relutavam em permitir que seus alunos participassem delas, um preconceito que Takashi não teve.

Após a participação de Ichihara no UFC, a imprensa japonesa começaria a pressionar por um confronto entre Kenichi Osada, outro aluno de Takashi, considerado o principal nome do daidojuku, e Masaaki Satake, considerado o principal nome do caratê seidokaikan, outro que teve origem no kyokushin e contava com bastante contato físico. O confronto nunca ocorreria, mas o daidojuku e o seidokaikan se tornariam as duas mais famosas artes marciais japonesas da época, com seus lutadores sendo manchete em jornais e estampando a capa das principais revistas sobre artes marciais do país. Em 1995 Takashi decidiria mudar o nome da organização que criou para cuidar das regras e torneios de seu esporte de Karate-Do Daidojuku para Federação Internacional de Caratê Kakuto Daidojuku (KKIF), que, mesmo com apenas um membro, se tornaria a principal entidade no planeta a regular e organizar o daidojuku.

Havia um detalhe, porém, que desagradava Takashi: com tudo o que estava acontecendo, ele achava que o esporte estava muito centrado na autopromoção, quando seu principal objetivo era o de criar uma nova arte marcial, que, assim como o judô, seguisse o código do budô, servindo para defesa pessoal e como filosofia de vida. Assim, em 2001, ele surpreenderia ao convocar uma coletiva de imprensa na qual anunciaria que estava mudando vários dos fundamentos do daidojuku, que não teria mais nada a ver com o caratê e passaria a ser uma arte marcial completamente independente, chamada kudô (o "caminho do céu"). Na mesma coletiva, ele anunciaria que a KKIF estava mudando de nome para Federação Internacional de Kudô (KIF), e a realização do primeiro Campeonato Mundial de Kudô, que aceitaria a participação de praticantes de diversas artes marciais, desde que todos se comprometessem a seguir as regras e os princípios do kudô.

Desde seu início, a KIF é uma federação internacional diferente, pois, além de regular o kudô e organizar seus torneios internacionais, ela dá suporte para atividades sociais e para a inclusão do kudô no programa de educação física das escolas, contando com o apoio do Ministério da Educação, Cultura, Esporte, Ciência e Tecnologia do Japão. Hoje, a KIF já conta com 52 membros, incluindo o Brasil. O país com o maior número de praticantes registrados não é o Japão, mas a Rússia, onde o daidojuku começou a ser praticado em 1991 na cidade de Vladivostok; Takashi iria a Moscou pessoalmente para a fundação da Federação Russa de Caratê Daidojuku (hoje Federação Russa de Kudô), em 1994, mesmo ano no qual seria realizado o primeiro torneio de daidojuku fora do Japão, também em Moscou. O primeiro lutador estrangeiro a vencer um torneio dentro do Japão também seria um russo, Alexey Kononenko, em 1996, assim como o primeiro estrangeiro a chegar ao sexto dan, Roman Anashkin, em 2013.

Falando nisso, assim como outras artes marciais, o kudô tem um sistema de ranqueamento dividido em kyu e dan e representado por faixas coloridas amarradas na cintura dos praticantes (que se chamam kudoka), que simbolizam sua proficiência nas técnicas do estilo. Todo kudoka começa "sem kyu", passando então para o décimo e seguindo em ordem decrescente (10, 9, 8, 7...) até o primeiro, quando pode fazer o exame para o primeiro dan; a partir daí a ordem é crescente (1, 2, 3, 4...), sendo, atualmente, o mais alto dan possível o nono, do qual fazem parte Takashi e alguns de seus primeiros alunos. Uma diferença do kudô em relação a outras artes marciais é que, devido à opinião de Takashi de que isso seria mais justo, um kudoka pode galgar um nível no ranqueamento não só passando nos exames de troca de faixa, mas também devido a seu bom desempenho em torneios, exceto no caso do primeiro kyu para o primeiro dan, quando o exame é obrigatório; o próprio Anashkin se beneficiou dessa regra, passando do quinto para o sexto dan após vencer vários torneios.

Outra diferença estabelecida por Takashi é que o ranqueamento de cada kudoka determina quais golpes são válidos nas lutas das quais ele participa, sendo que, caso ocorra de lutadores de ranqueamentos diferentes se enfrentarem, devem ser usadas apenas as técnicas permitidas ao de ranqueamento mais baixo. Essa regra vale para kudoka do décimo ao terceiro kyu, com os kudoka a partir do segundo kyu estando liberados para usar todas as técnicas, e kudoka sem kyu não podendo participar de torneios. Em relação às cores das faixas, kudoka sem kyu usam faixas brancas, do décimo e nono usam faixas roxas, do oitavo e sétimo usam faixas azuis, do sexto e quinto usam faixas amarelas, do quarto e terceiro usam faixas verdes, do segundo e primeiro usam faixas marrons, e kudoka de qualquer dan usam faixas pretas.

Outra novidade criada para o kudô por Takashi, baseada na sua impressão de que os lutadores mais altos tinham vantagem sobre os mais baixinhos, é que o kudô não tem categorias de peso, e sim categorias de PI. PI é a sigla para physical index, ou índice físico, e corresponde à soma do peso do lutador, em kg, com sua altura, em cm - assim, um lutador de 1,65 m e 70 kg tem PI 235. Tanto no masculino quanto no feminino, são seis categorias: até PI 230, de 231 a 240, de 241 a 250, de 251 a 260, de 261 a 270 e acima de PI 270. O kudô é atualmente a única luta esportiva com competições internacionais a considerar a altura dos lutadores na hora de definir as categorias.

O uniforme de competição do kudô se chama kudogi, e é no mesmo estilo dos de lutas como judô e caratê: uma calça comprida presa através de um cordão na cintura e uma camisa, comprida o suficiente para chegar abaixo da cintura, de mangas até os cotovelos e aberta na frente, ficando fechada pela faixa do ranqueamento; as mulheres devem usar uma camiseta branca ou top esportivo por baixo da camisa. Em torneios organizados pela KIF, um dos lutadores sempre usa gi branco, enquanto o outro sempre usa gi azul, com os equipamentos de proteção sendo na cor branca para ambos. Os equipamentos de proteção obrigatórios são capacete e luvas, além de protetor genital para os homens e de seios para as mulheres. As luvas possuem uma parte bem larga e acolchoada que cobre as costas das mãos e os nós dos dedos, e uma parte elástica que cobre os punhos e as palmas das mãos, ficando as pontas dos dedos livres; o capacete, além de contar com uma proteção acolchoada para testa, orelhas, queixo e nuca, conta com um "visor" de plexiglas transparente, que permite a visualização completa do rosto do lutador ao mesmo tempo que o protege de golpes - devido a esse visor, é comum lutadores de kudô lutarem usando óculos ao invés de lentes de contato.

O objetivo em uma luta de kudô é que o combate pareça o mais realístico possível, o que faz com que haja poucas regras. Os golpes válidos do kudô incluem socos, chutes, cotoveladas, joelhadas, cabeçadas, arremessos, agarrões, combinações (agarrar o oponente e dar uma joelhada ao mesmo tempo, por exemplo) e até mesmo luta no solo, com técnicas de estrangulamento semelhantes às do judô. O kudô não possui kata, com todo o treinamento sendo focado no combate; suas aulas incluem, entretanto, o reigi, as aulas de etiqueta japonesa, nas quais são treinadas a concentração, a resistência mental e o foco.

O kudô é disputado em um tatami quadrado, de 13 m de lado, no centro do qual há um quadrado de 9 m de lado, obrigatoriamente de cor diferente. O quadrado menor é a área válida de luta, e, para um golpe ser considerado válido, ele tem que começar dentro dessa área (mesmo que o oponente seja atingido fora dela). Sair da área válida de luta de propósito é falta, e um lutador pode ser punido por falta de combatividade se o fizer reiteradamente. Toda vez que ambos os lutadores saírem da área válida de luta, o árbitro central deve interromper a luta e recomeçá-la com eles em suas posições iniciais. Além do árbitro central, que acompanha a luta dentro do tatami, próximo aos lutadores, há outros quatro, um em cada quina do tatami, que podem chamar a atenção do árbitro em caso de pontos ou faltas que ocorram sem que ele tenha visto.

As únicas áreas do corpo do oponente que não são válidas para serem atingidas são as costas, a nuca e as genitais; todas as demais podem ser atingidas com qualquer tipo de golpe. Os pontos são conferidos não por técnica, mas por efetividade, com os árbitros tendo de levar em conta se o oponente "sentiu o golpe" ou se apenas foi atingido por ele - caso no qual não é aplicada pontuação. Dependendo da efetividade do golpe e da área atingida, ele pode valer 1,  2, 4 ou 8 pontos, com essas pontuações sendo chamadas, assim como no judô, koka, yuko, wazari e ippon; assim como no judô, um ippon encerra a luta imediatamente, mas, diferentemente do que ocorre lá, dois wazari não valem um ippon. Para obter um ippon, um lutador deve conseguir um golpe que faça, com sua força, o oponente recuar no mínimo dois passos, tocar o chão com qualquer parte do corpo que não sejam as solas dos pés ou as palmas das mãos, ou ficar em um estado que o árbitro central considere que não é possível ele continuar lutando. Curiosamente, além de vencer a luta por ippon, um lutador também pode vencer por nocaute, quando o árbitro avalia que o oponente não pode continuar lutando após receber uma sequência de golpes ou um golpe qualquer que não tenha força para ser considerado um ippon.

Além de pontuar com seus próprios golpes, um lutador pode ganhar pontos através das penalidades do oponente, com cada penalidade valendo um ponto. A penalidade mais comum é a falta de combatividade, que inclui fugir da luta, ficar somente esperando o oponente atacar, atacar sem o intuito de marcar pontos, apenas para deixar o tempo passar, dentre outros comportamentos. Também incorre em penalidade o lutador que usar golpes inválidos, faltar com o respeito com o oponente ou os árbitros, ou não atender aos comandos do árbitro central (como o de interromper a luta); um lutador que seja reincidente nessas práticas durante uma luta pode ser desclassificado, ficando o oponente automaticamente com a vitória.

Como já foi dito, o kudô também tem técnicas de solo, aplicadas quando um dos lutadores é derrubado pelo oponente. De acordo com as regras da KIF, a luta de solo só pode ocorrer durante 30 segundos, no máximo duas vezes por luta (ou seja, 30 segundos, ficam de pé, e, em outra ocasião posterior, mais 30 segundos). Um lutador que leve a luta para o solo por uma terceira vez recebe uma penalidade, assim como o que não respeita o comando de interromper a luta após os 30 segundos terem se esgotado. Durante os 30 segundos em que estão no solo, ambos os lutadores podem tentar aplicar várias técnicas, que valem 1, 2 ou 4 pontos, dependendo de sua efetividade e do tempo que o oponente ficou imobilizado por elas; também é possível ganhar a luta por submissão (quando é aplicada uma técnica da qual o oponente não consegue se desvencilhar por mais de 20 segundos) ou por estrangulamento (quando o oponente desiste da luta por estar sentindo dor ou dificuldade de respirar, com o árbitro também podendo dar a vitória por estrangulamento se perceber que o lutador vai perder a consciência).

Uma luta de kudô dura três minutos corridos sem intervalo, ao fim dos quais o lutador que tiver mais pontos será o vencedor. Em caso de empate no final desse tempo, são disputadas até duas prorrogações de três minutos cada. Se o empate persistir ao final da segunda prorrogação, o vencedor é escolhido por decisão dos árbitros, levando em conta fatores como qual foi mais combativo, qual utilizou as melhores técnicas e qual teve os golpes mais eficientes. Assim como outras lutas de contato, no kudô os lutadores têm direito a um "tempo médico", no qual o relógio fica parado, caso precisem de atendimento; esse tempo é de um minuto por luta, mas pode ser dividido por vários atendimentos - com o lutador sendo desclassificado caso o estoure.

O kudô possui dois campeonatos de igual importância, o Campeonato Mundial de Kudô e a Copa do Mundo de Kudô; ambos possuem o mesmo formato e são abertos a todos os lutadores cujas federações nacionais são membros da KIF, sendo a única diferença a de que o Campeonato Mundial é sempre realizado no Japão, e a Copa do Mundo é realizada a cada edição em um país diferente. O Campeonato Mundial é disputado a cada quatro anos desde 2001, e a Copa do Mundo é disputada a cada dois anos desde 2011. Atualmente ambos possuem sete categorias cada, as seis do masculino, baseadas no PI, e a categoria feminina aberta, da qual podem participar lutadoras de qualquer PI - o que ocorre porque o número de lutadoras de kudô ainda é muito baixo.
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